Dedicado a Sua Divina Graça A.C. Bhaktivedenta Swami Prabhupada e Gurudeva Srila Dhanvantari Swami

Dedicado a Sua Divina Graça A.C. Bhaktivedenta Swami Prabhupada e Gurudeva Srila Dhanvantari Swami
Jagad Guru Srila Prabhupada

segunda-feira, 25 de junho de 2007

ISKCON e Varnasrama-Dharma: Uma Missão Incompleta


ISKCON e Varnasrama-Dharma: Uma Missão Incompleta
Artigo apresentado na “Conferência de 30 anos da ISKCON Alemanha”, em Köln, Alemanha, em 29 de janeiro 1999 por Ravindra Svarupa Dasa (ACBSP)
Impresso com a permissão do Jornal de Comunicação da ISKCON [disponível em http://www.mihet.org/node/4, tradução de Gitamrta Devi Dasi (HdG)


Ravindra Svarupa Dasa (Dr William H. Deadwyler, III), um dos primeiros discípulos de Srila Prabhupada, observa aqui uma das mais controversas instruções de Prabhupada; a necessidade de estabelecer varnasrama-dharma (a organização social de acordo com a qualidade e trabalho dos membros da sociedade). Ele observa a lógica interna do sistema varnasrama e, então, descreve algumas das compreensões desse sistema, as quais têm surgido na ISKCON. A questão de como estabelecer o varnasrama-dharma em um contexto moderno foi a fonte de um debate há muito tempo iniciado dentro da ISKCON, e este artigo de Ravindra Svarupa contribui com o debate por meio de sua análise da situação. Esta análise foca a necessidade de encorajar uma classe brahmínica (intelectual) dentro da sociedade – um cérebro para o corpo social.
No dia 11 de julho de 1966, em Nova York, Srila Prabhupada criou a Sociedade Internacional para a Consciência de Krishna. Naquele momento, Prabhupada já havia descoberto uma audiência para sua exposição do Srimad Bhagavatam, uma exposição que ele caracterizava como “uma apresentação cultural para a re-espiritualização de toda a sociedade humana (Bhag. Canto 1, Prefácio). Em um passo a diante em direção à cultura de “re-espiritualização”, ele estabeleceu a ISKCON. A ISKCON deveria ser uma sociedade exemplar, dentro da qual a cultura do Srimad Bhagavatam seria realizada e pela qual ela seria espalhada por todo o mundo.
Enquanto esse tanto sempre foi uma verdade concreta para os membros da ISKCON, é um fato que durante os trinta e três anos da ISKCON, suas idéias sobre o que a ISKCON deveria ser, em termos de articulação interna, e sobre como ela deveria se relacionar com a sociedade ao seu redor têm sido muito fluida. As idéias de seus membros sofreram mudanças. Parece que mesmo as idéias de Prabhupada mudaram. A razão deste estado não estabelecido tem a ver com as adequações que a teoria deve tornar realidade.
Isso é reconhecido na própria tradição de Prabhupada pela máxima de que mesmo a Verdade Absoluta deve ser afinada com as relatividades de desa-kala-patra - ‘os ambientes circunstanciais de tempo, local e objeto’ (Bhag.1.6.26-30, significado). A freqüente experiência duramente adquirida por fazê-lo é o que se chama de “sabedoria” (em sânscrito, vijñana). Na aplicação do princípio para a prática nós geralmente devemos ter o recurso do método de “tentativa e erro”. “Você aprende com a experiência”, Prabhupada é freqüentemente citado dizendo isso. “E experiência significa que você comete erros”.
Eu espero familiarizar o leitor com parte da história de nossa experiência, de nossos erros. Eu espero que você também encontre exibidos aqui começos de um pouco de sabedoria duramente adquirida. Eu também espero que você obtenha uma boa idéia de algumas dificuldades que estamos enfrentando.
Para compreender estes assuntos, precisa-se se tornar familiarizado com dois ideais, ou modelos, sociais contrastantes transmitidos para nós por Srila Prabhupada. O primeiro é aquele de uma sociedade de vaishnavas, de devotos transcendentais, liberados, que espontaneamente se conduzem de acordo com princípios chamados sanatana-dharma. O segundo é aquele de uma sociedade de seres humanos materialmente condicionados que estritamente se conduzem em obediência às injunções védicas sob o sistema chamado varnasrama-dharma.
Para entender ambos os sistemas, nós precisamos estar esclarecidos quanto ao que significa dizer que alguém é enredado ou condicionado, por um lado, e liberado ou transcendental, pelo outro. Isso é apresentado claramente na Bhagavad-gita (todo o décimo quarto capítulo é dedicado a esta exposição). Ser uma alma enredada ou condicionada quer dizer estar enredado ou condicionado pelos três gunas, ou “modos” da natureza material; eles são chamados de sattva-guna, o modo da bondade, ou da pureza, rajo-guna, o modo da paixão, e tamo-guna, o modo da ignorância, ou da escuridão. Os três modos são mais prontamente reconhecidos no ciclo tripartido da natureza: nós vemos que as coisas vêm a ser, duram por algum tempo e, então, sofrem a aniquilação. Assim, os produtos da aniquilação fornecem a matéria prima para a nova fase da criação conforme o ciclo se inicia novamente. Na compreensão védica, essas três fases exemplificam as categorias fundamentais para entender o mundo material. Quando as coisas são criadas, a natureza é vista como agindo no modo da paixão, rajo-guna. Quando as coisas estão sendo mantidas, a natureza está agindo no modo da bondade, sattva-guna. E quando as coisas estão sofrendo a destruição, a natureza está agindo no modo da ignorância, tamo-guna.
De acordo com a Bhagavad-gita, esses mesmos modos também operam para determinar, ou condicionar, a personalidade humana. Portanto, nós temos uma tipologia psicológica de três categorias. O modo da bondade manifesta uma atitude que é desapegada, sem paixão e interessada no conhecimento por si mesmo. O modo da paixão é evidente relacionada com a falta de ou o desejo por algo que impele esforços desgastantes para obter os objetos dos desejos. O modo da ignorância é manifesto na apatia, indiferença, obviedade e confusão. Quando, por exemplo, a consciência é condicionada em sattva-guna, ela permanecerá alerta e atenta (em relação à quase todo assunto apresentado) e, ao mesmo tempo, desapegada e desinteressada. A consciência condicionada em rajo-guna é excitada e um pouco confusa acerca do objeto de desejo. A consciência condicionada por tamo-guna é ignorante, desatenta, facilmente distraída e predisposta à má percepção crônica.
Eu suspeito que a maioria de nós pode reconhecer esses três estados psicológicos por meio de nossa experiência. Provavelmente já passamos algum tempo em cada um desses modos. Todos os três estão presentes em uma pessoa e entre eles há sempre “uma competição por supremacia”, conforme a Bhagavad-gita (14.10) diz. Entretanto, há uma tendência por um modo particular ou uma combinação dos modos predominar em um dado indivíduo, o conduzindo de acordo com sua própria maneira pragmática para seu fim característico. Por isso, a Bhagavad-gita diz que o modo da bondade condiciona uma pessoa para a felicidade ou satisfação e resulta em conhecimento. O modo da paixão condiciona uma pessoa para a atividade egoisticamente motivada e resulta em miséria (porque desejos apaixonados nunca param de se multiplicar e de nos forçar a agir, nunca resultando em satisfação). O modo da ignorância nos prende à desilusão e resulta em desilusão sistemática ou loucura. Prabhupada caracterizou os três “tipos puros” dos modos da seguinte forma: “Uma pessoa está feliz, outra está muito ativa e outra miserável” (BG. 14.6, significado).
Nós todos já encontramos várias estruturas de pensamento organizadas – seja cultural, filosófica, religiosa, científica ou ideológica – as quais apresentam sistemas de categorias abstratas por meio dos quais podemos apreender e compreender o mundo. Quando nos educamos em tal sistema – freqüentemente tentando entrar nele por meio do método de projeção simpática ou Hineinfühlung – nós às vezes descobrimos que o sistema ilumina ou torna legível certas áreas da experiência que nós não havíamos percebido particularmente anteriormente ou considerado relevante. Se nós, então, aplicarmos esse sistema a nossos empreendimentos práticos e nos descobrimos novamente aptos a lidar com o mundo de uma maneira que parece consistentemente eficaz e produtiva nós premiamos o sistema com a mais alta honra: nós o consideramos como a verdade.
Foi assim par mim – e para muitos devotos – com a Bhagavad-gita, como Prabhupada a apresentou. Eu olhei para aquela sociedade – e para mim – através das lentes da Bhagavad-gita e imediatamente os gunas se destacaram; eu podia vê-los claramente. Enquanto essas categorias podem não ser eficazes para os empreendimentos de um cientista atômico ou um agrônomo, digamos, elas de fato eram imprescindíveis para o propósito da maioria de nós que éramos atraídos à ISKCON: nós estávamos em busca de liberação, de transcendência. E transcendência significava, concretamente, transcender os modos da natureza material. Isso era possível, Prabhupada dizia, para todos: “... se uma pessoa quer, ela desenvolve, pela prática, o modo da bondade e, assim, derrota os modos da ignorância e da paixão... . Apesar de existir os três modos da natureza material, se alguém for determinado ele pode ser abençoado com o modo da bondade e, por transcender o modo da bondade, ele pode se situar em bondade pura, a qual é chamada estado de vasudeva, um estado no qual se pode compreender a ciência de Deus (BG. 14.10, significado).
O resultado inicial do cultivo apropriado da consciência de Krishna deveria ser o desaparecimento dos sintomas dos modos da paixão e da ignorância no praticante. Luxúria, ganância, ira e algo semelhante deveriam desaparecer do coração. Desta fora, uma pessoa se torna estabelecida no modo da bondade. O modo da bondade é uma condição existencial necessária para que poder compreender e experimentar a realidade espiritual. Assim, o modo da bondade é uma plataforma material, um piso de lançamento, como se fosse, a partir do qual se pode fazer a viagem final rumo à transcendência, onde não há nem criação, nem dissolução, mas existência eterna, ou, em outras palavras, sattva pura, imaculada. Desta forma, a teoria dos modos oferece aos devotos um guia de ruas do mundo material, com a saída claramente demarcada.
A teoria dos modos também fornece a base para outro conjunto de categorias: a das quatro varnas. Assim como o corpo humano é equipado pela natureza com cabeça, braços, estômago e pernas, o corpo social é constituído de quatro grupos ocupacionais: os brahmanas, que incluem os pensadores e os professores (a cabeça); os ksatriyas – os governantes e protetores (os braços); os vaisyas – os produtores e comerciantes (o estômago); e os sudras – os trabalhadores e os assistentes em geral (as pernas). Toda sociedade exige uma contribuição desses especialistas no pensar, governar, produzir e trabalhar. Krishna afirma na Bhagavad-Gita (4.13) que esta organização é gerada por Deus, de tal maneira que cada pessoa é naturalmente disposta em direção a uma categoria particular em virtude do guna (os modos da natureza controladores) e do karma (atividade especializada e meios de sobrevivência).
O sistema no qual o guna e o karma assim determinam o varna é chamado daiva-varnasrama-dharma, o sistema divinamente estabelecido. Prabhupada explicitamente contrasta esse sistema divino com o sistema de casta hindu padrão, no qual o nascimento é o único determinante da condição de membro; Prabhupada o chama de asura-varnasrama-dharma, ou o sistema irreligiosamente criado (ver, por exemplo, o significado para CC. Madhya 3.6). Prabhupada e seus mestres predecessores condenaram esse sistema hereditário como um sistema autenticamente corrompido, vendo-o como a maior fonte de injustiça social e caos na Índia. Em várias aulas, Prabhupada inclusive delineia a causa da partição nacional da Índia a partir as injustiças instauradas pelo princípio degradado do “brahmanismo hereditário” (ver, por exemplo, aula sobre Bhag. 1.2.2: Roma, 26 de maio de 1974).
Um brahmana deve de fato estar no modo da bondade, pois a varna é determinada pelo guna. Uma boa maneira para pensar sobre o sistema é imaginar os gunas distribuídos em um contínuo, com a bondade em um final, a ignorância no outro e a paixão ao meio. Em uma linha um tanto arbitrária quando a bondade se torna suficientemente misturada com a paixão a demarcação entre brahmana e ksatriya ocorre. De forma semelhante, quando a paixão se torna suficientemente misturada à ignorância, há a demarcação entre ksatriya e vaisya. Quando a ignorância suficientemente predomina sobre a paixão, há a divisão entre vaisya e sudra. Os indivíduos situados nas regiões de fronteira poderiam, a princípio, ser ocupados em um lado ou do outro, de acordo com variáveis como a educação, treinamento ou aptidão.
As categorias dos gunas e dos varnas são importantes para a compreensão do que Prabhupada concebia como a principal missão social da ISKCON. Uma vez, no início dos anos 70, eu estava presente enquanto a imprensa entrevistava Prabhupada depois de sua chegada a um aeroporto em Nova York. Um repórter lhe perguntou: “Por que o senhor veio ao Oeste”. “Eu vim”, Prabhupada respondeu, “para dar a vocês um cérebro. Uma sociedade”, ele continuou, “está sem cabeça”. Usando a analogia do corpo humano, ele explicou a articulação da sociedade humana dentro dos quatro varnas. Ele, então, declarou que a sociedade ocidental moderna estava com má formação. “Há alguns vaisyas e todo mundo mais é sudra”. Em outras palavras, aqueles agora envolvidos em pesquisa e educação, no governo e na defesa estão, consciente ou inconscientemente, a serviço de um grupo de vaisyas. (A percepção de Prabhupada é talvez apoiada pelo relatado de que na América cinco por cento das famílias agora controlam noventa por cento da riqueza.) Não há brahmanas ou ksatriyas apropriados.A intenção de Prabhupada era re-criar uma classe de brahmanas genuínos. Isso ajudaria retificar as deformidades da sociedade moderna e minimizar os problemas espirituais, psicológicos, sociais, políticos e ecológicos instaurados pelo desenvolvimento econômico hipertrofiado e outros crescimentos exagerados devido ao rajo-guna. Prabhupada observa, “A civilização moderna é considerada avançada de acordo com o padrão do modo da paixão. Anteriormente, a condição avançada era considerada por estar no modo da bondade” (BG. 14.7, significado). Brahmanas genuínos, ele esperava, ajudariam restabelecer as prioridades da civilização avançada.